O que vou apresentar aqui hoje trata de um aspecto pouco conhecido da história econômica do século XIX no Brasil: o financiamento público da educação primária.
Vou apresentar essa história rapidamente considerando propostas mas também uma experiência importante, mas pouca conhecida de financiamento das escolas primárias.
Essa história precisa ser contada no plano dos governos provinciais e municipais, pois foram eles - não o governo central - que assumiram praticamente a totalidade da oferta de educação primária no Brasil na época. Em particular, usarei o caso de São Paulo como exemplo.
O debate sobre a instrução primária no Brasil recém-independente ganhou impulso com a formação das Assembleias Legislativas, conforme determinação do Ato Adicional de 1834 que reformou a Constituição.
A partir dessa época, as províncias passaram a discutir como organizar e financiar o ensino primário público que, de acordo com a Constituição de 1824, deveria ser gratuito e universal. Ao governo central, cabia a responsabilidade direta apenas sobre a instrução primária na Corte, com os governos intermediários sendo encarregados do ensino básico nas províncias.
Nada havia na Constituição que impedisse que o governo geral também contribuísse para o ensino primário nas províncias, mas prevaleceu o princípio de divisão rígida das atribuições entre as esferas de governo. Nenhum papel, por sua vez, foi conferido aos municípios, exceto (e eventualmente) o de fiscalização.
Em São Paulo, a partir do final da década de 1860 um número crescente de publicistas e deputados passou a reconhecer mais explicitamente que a expansão da instrução primária requeria a mobilização em larga escala de recursos públicos.
Como afirmou o órgão dos liberais radicais em São Paulo em 1869, seria necessário:
“dar à instrução todos os recursos que tiver necessidade, por isso que acha-se sobejamente averiguado que o povo que tem melhores escolas é o primeiro sempre. Os Estados Unidos da América do Norte, a Inglaterra e a Bélgica aí estão para confirmarem esta asserção.” (O Radical Paulistano)
Inicialmente, os liberais radicais de São Paulo concentraram seus esforços em duas bandeiras: obrigatoriedade e liberdade do ensino. A Reforma da Instrução Pública de 1874 consagrou estes princípios.
A premissa de seus defensores (inclusive com adesão posterior dos conservadores) era que essas duas medidas seriam suficientes para a generalização do ensino primário.
Mas poucos anos depois, os antigos defensores já reconheciam que os resultados sobre as matrículas das escolas primárias eram pífios.
Foi a partir do início da década de 1880 que as propostas começaram a mudar de forma substancial, com republicanos (como Rangel Pestana) e uma parcela dos liberais defendendo uma reforma profunda da instrução pública.
O princípio básico dessas propostas foi descentralizar e democratizar, e de forma radical: com tributação local e participação direta de pais e moradores na direção das escolas.
O maior exemplo foi o projeto de Reforma da Instrução Pública de 1885 aprovado pela Assembleia Legislativa e pelo presidente da província, Almeida Couto (liberal), com apoio dos Republicanos. Duas medidas centrais:
A reação a estas propostas foi grande. Com a queda do gabinete liberal (Saraiva) e ascensão dos conservadores (Cotegipe, agosto/1885) no governo Geral, o novo presidente da província vetou a reforma do governo liberal de Almeida Couto.
A renegociação de um novo projeto eliminou justamente a representação direta de pais e professores: os conselhos municipais seriam formados agora por 2 representantes da câmara e 1 nomeado pelo presidente da província.
Mesmo assim, o fundo constituído por imposto escolar (1 mil-réis), multas e doações foi mantido, sendo administrado pelos conselhos municipais de instrução. Esse foi o modelo adotado pela lei no 81 de 6/4/1887.
Ou seja, apesar de eliminar a participação direta da população via conselhos locais, a Reforma da Instrução Primária de 1887 ainda preservou a descentralização parcial dos recursos destinados às escolas.
Essa foi uma forma inédita (embora praticamente esquecida hoje) de enfrentar o crônico problema da deficiência de recursos públicos para a instrução primária em São Paulo, inspirada em experiências internacionais e nas propostas de Tavares Bastos (A Província, 1870).
Até então, os recursos para as escolas vinham exclusivamente do fundo geral de tributos do governo provincial. Os municípios nada contribuíam para a instrução primária (até os anos 1880).
As municipalidades de São Paulo dependiam essencialmente de tributos tradicionais sobre comércio, consumo e serviços para seus gastos correntes e investimentos.
Quando diversificaram suas fontes de recursos, as câmaras concentraram-se em atividades profissionais, artesanais e manufatureiras de seus núcleos urbanos, eximindo as propriedades rurais.
No caso do governo provincial/estadual, o imposto de exportação (café) foi a principal fonte de recursos na maior parte do período.
Houve diversificação de tributos a partir de 1904, inclusive incidindo sobre capital e propriedades.
Mas o imposto sobre a propriedade rural gerou apenas 0,2% da receita do estado de São Paulo em 1905 e 0,9% em 1920 – menos do que o de aguardente, com 1,5% em 1910.
Voltando ao imposto escolar criado pela Reforma da Instrução Pública de 1887 em São Paulo: qual foi sua importância para o financiamento das escolas?
Por ser um típico imposto de capitação, os problemas com o imposto escolar eram bem conhecidos: por exemplo, recaía de forma indiscriminada sobre todos os indivíduos, à revelia de sua renda e riqueza.
Desta forma, a experiência de descentralização do ensino primário implementada pela lei no 81 de 1887 distinguia-se do modelo de financiamento das escolas nos Estados Unidos e Canadá (e países da Europa), que tinham no imposto local sobre a propriedade rural e não-rural a sua mais importante fonte de receita.
A despeito de suas limitações, o imposto escolar arrecadou recursos expressivos nos primeiros meses de sua implementação (após mar/1888). As receitas foram administradas pelos conselhos municipais criados em 1887.
Até set/1889, o imposto arrecadou o equivalente a 16,6% do total das despesas estaduais com a instrução primária em São Paulo.
Mas apesar dos bons resultados iniciais, o imposto escolar e os conselhos foram abolidos, paradoxalmente, pela Reforma da Instrução implementada pelos republicanos em 1892.
Para avaliar sua importância, vale formular o seguinte contrafactual: qual poderia ter sido a despesa municipal com ensino primário caso o imposto escolar fosse mantido após 1892?
(o valor contrafactual da despesa na figura abaixo foi estimado assumindo-se que a arrecadação do fundo escolar cresceria ao mesmo ritmo observado pela receita real dos municípios de São Paulo entre 1889 e 1905.)
O contrafactual sugere que a despesa das municipalidades financiada pelo imposto escolar ficaria em média oito vezes acima da despesa municipal efetiva entre 1894 e 1899 – 343 réis contra 44 réis (em termos per capita a preços de 1913).
Entre 1900 a 1903, quando o governo estadual começou a subvencionar as municipalidades, o nível da despesa contrafactual ainda seria em média duas vezes maior do que o realizado pelas municipalidades (479 réis em comparação a 228 réis).
Ou seja, parece certo que o imposto escolar, no formato estabelecido, não seria suficiente para atender todas as crianças fora das escolas (76% daquelas em idade escolar em 1907). Mas seus recursos não foram desprezíveis.
O que nos leva à pergunta: por que o imposto escolar foi suprimido se o seu resultado em termos de receitas para a instrução primária foi expressivo? A razão parece ter sido basicamente política.
A administração do fundo escolar pelos conselhos locais (mesmo que expurgados da participação de pais e moradores) parece ter sido eficaz, mas isso não impediu sua eliminação em 1892 pelos mesmos republicanos que antes os defendiam.
Descentralização política e participação local eram tradicionanalmente vistas com desconfiança. Os conselhos municipais ganharam força no curto espaço de tempo de sua existência.
Além disso, o fundo escolar abria a possibilidade de introdução de novos tributos, sobre outras fontes - como a grande propriedade rural.
Paradoxalmente, os princípios das reformas de 1885/87 foram não só abandonados, mas esquecidos pelo próprio governo republicano. É provável que a radical transformação das rendas públicas de São Paulo também tenha contribuído para isso.
A continuidade do boom do café e, sobretudo, a transferência do imposto de exportação para os estados sancionada pela Constituição de 1891 levaram a um grande aumento de arrecadação para os estados produtores.
Para o estado de São Paulo, isso significou um aumento real de 7,5 vezes (!) nas receitas fiscais de 1905 em relação aos anos 1888-1889.
E foi devido a essa expansão excepcional das receitas públicas que São Paulo saiu de uma situação intermediária em 1870 para a de um dos estados líderes da instrução primária no Brasil nos anos seguintes (ao lado de SC, PR, RS e ES).
Ainda assim, as taxas de matrícula do estado de São Paulo continuavam, em 1920, próximas ou inferiores aos índices dos países mais atrasados educacionalmente na Europa, como Portugal (53), cf. a seguir: